27.8.13

71.

Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento.
Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.
É curioso que, sendo escassa a minha capacidade de entusiasmo, ela é naturalmente mais solicitada pelos que se me opõem em temperamento do que pelos os que são da minha espécie espiritual. A ninguém admiro, na literatura. mais que os clássicos, que são a quem menos me assemelho. A ter de escolher, para leitura única, entre Chanteaubriand e Vieira, escolheria Vieira sem necessidade de meditar.
Quanto mais diferente de mim alguém é, mais real parece, porque menos depende da minha subjectividade. E é por isso que o meus estudo atento e constante é essa mesma humanidade vulgar que repugno e de que disto. Amo-a porque a odeio. Gosto de vê-la porque detesto senti-la. A paisagem, tão admirável como o quadro, é em geral incómoda como leito.

Pessoa, Fernando in O Livro do Desassossego

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